Ontem, por um abraço do destino (eu tinha escrito inicialmente "golpe", mas só depois notei que não era bem a expressão mais adequada, porque na verdade não foi uma ação ruim e agressiva, mas sim gentil e inesperada) eu e a minha irmã mais velha fomos parar nas primeiras cadeiras do Teatro Renault para assistir O Fantasma da Ópera.
Musicais tem em mim um poder gigantesco e instantâneo de me deixar emocionada antes mesmo dos atores aparecerem. Toda aquela expectativa de sentarmos quando ouvimos as chamadas e prenúncios do espetáculo como se fôssemos embarcar em um avião paulistano no estilo meio art decó, meio eclético, rumo à Paris ou qualquer outro cenário é o aviso mais poético que já ouvi sair de caixas de som.
Apesar de só ser considerada a maior atração teatral de todos os tempos, não vou falar sobre a história em respeito a quem não a conhece e um dia deseja se permitir conhecer pela peça (até porque, EU CONFESSO, eu cochilei uns minutinhos e eu odeio o meu corpo e a minha mente por isso - eu não sei bem a quem culpar), então eu vou falar da surrealidade de ouvir aquela soprano alta e imponente ocupar todo o teatro só com a voz. E quando ela teve que imitar o som de um sapo? Ela me fez pensar que sapos cantam bem! ELA ME FEZ TER INVEJA DE SAPOS. Vou ainda destacar como toda a produção é bem feita e encantadora, os efeitos, os fogos, a dinâmica, os movimentos, os cenários, a iluminação... Lá dentro era um universo realmente mágico e acolhedor e até mesmo o espectador sentado ao meu lado parecia fazer parte da peça ao me dar um olhar de reprovação, extremamente educado e penteado, quando sem querer eu o chutei tentando me ajeitar com frio na cadeira.
Eu queria todas as vozes, todas as roupas MARAVILHOSAS que brilhavam, eu queria fazer parte daquilo.
Foi tudo envolvente e espetacular, como se espera de um espetáculo. E a peça terminou de maneira extremamente enigmática pra mim, com uma cena final à lá David Copperfield e a Estátua da Liberdade (tá que não era uma estátua e sim uma pessoa, mas era uma pessoa alta).
E ainda no saguão, a atmosfera criada pelos adornos dourados e os frequentadores de salto que fazem toc toc no chão todo desenhado, as expressões faciais de que aquela riqueza era cotidiana para alguns, a cordialidade com que todos se tratavam ao esbarrar, tudo me fez sentir a pessoa mais ryca do Universo, de todas as formas que se pode interpretar.
E então eu e a minha irmã fomos atrás da nossa condução de volta à realidade sem saber que a realidade já estava ali me esperando.
Ainda na porta do Teatro Renault alguns taxistas estavam enfileirados e um moço, vestindo aqueles coletes neon que brilham no escuro, apoiado em um dos carros berrava "TÁXI! TÁÁÁXIII!" em um looping quase infinito até um funcionário do teatro pedir aos motoristas dos táxis que parassem um pouco mais à frente. Eu fiquei ali só observando o moço com colete, distraído, berrando, tentando conseguir a atenção de alguém, de costas para os carros e o funcionário indo falar com os motoristas sem ele perceber. O carro que o moço com colete se apoiava deu uma arrancada de leve e o assustou, aí ele falou baixinho mais pra si do que pro motorista "Ê camarada, que perigo, se passar em cima do meu pé não vai mais me sobrar nada pra andar". O moço já era meio manco, tinha o pé direito deformado. Ele usava um par clássico de havaianas que daria pra fazer uma corrente no Whatsapp de "Que cor você enxerga?" e eu ia dizer "Marrom e verde", mas eu sei que aquilo algum dia foi branco e azul. A camisa que ele usava estava com a coloração igualmente alterada. Aparentemente ele era um flanelinha sem vínculo com o teatro.
Com o taxista reposicionado, ele se apoiou no mesmo carro de novo e voltou a berrar "TÁÁÁXI! QUER TÁXI, SENHOR? AQUI MADAME!". Ele parecia interagir, mas ninguém deu muita bola.
De repente eu reparei que entre toda aquela galera de salto alto, passou gente que nem sapato tinha. Minha irmã, que tentava encontrar o Uber concentrada com o celular na mão começou a subir a rua e eu a acompanhei. Aproveitei o distanciamento pra falar...
"Você viu que o moço tinha o pé deformado? O táxi quase passou em cima, coitado."
"Que moço?"
"O moço que ficou berrando "táxi" na nossa frente, com aqueles coletes que piscam."
"Nossa, eu nem vi."
"Você e aparentemente todo mundo que tava ali do nosso lado."
"Você está sendo dramática, Karen."
"Bom, eu acabei de sair de uma peça de teatro. Aliás, você não acha irônico que uma galera ali pagou muito dinheiro pra ver O Fanstama da Ópera quando tinha um fantasma de verdade de graça ali na frente? ELE É O VERDADEIRO FANTASMA DA ÓPERA! Você não acha?"
"Eu acho que o nosso motorista passou a gente ali ó... Acabou de descer ali na frente, vem."
E lá fomos nós correr atrás do motorista e passamos pelo cantinho em que os atores e bailarinos ficam na saída e lá estava ela, ainda mais alta do meu lado do que em cima do palco. Ela nem me olhou, mas eu sorri só de reconhecer, Carlotta, a soprano que faz sapos parecerem inspiradores e eu voltei a sentir toda a empolgação que musicais e as suas chamadas na caixa de som me despertam.
Toda a minha reflexão derreteu em um sorriso quase infantil na minha cara.
Entramos no carro bem alegrinhas e eu teria batido palminhas se eu não estivesse segurando dois copos e um balde de pipocas de souvenir daquela noite com tantos messieurs, mesdemoiselles e fantômes. E a realidade só voltou a me acordar essa manhã, com a dúvida de quantas peças, táxis, coletes refletivos, berros e Karens pensativas serão necessários pra que um dia O Fantasma do Teatro Renault possa se sentar ao meu lado e me olhar educadamente enfezado quando sem querer eu o chutar me acomodando na cadeira e eu sairei de uma experiência maravilhosa daquelas pensando que realmente somos todos iguais? Que o destino abraça à todos nós? Que o meu privilégio está na experiência e não na minha condição social?
Ó céus, eu não queria muito, só cantar igual à ela quando tá imitando um sapo!
(Plot twist: Era pra Carlotta ser a invejosa do espetáculo e não eu.)
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